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quarta-feira, 12 de agosto de 2015

CHEIRO DE MORTE - J. B. Rodrigues


...A voz de Zaira foi ficando cada vez mais distante, enquanto um sentimento de fraqueza tomava conta de Arthur... sentia-se como se estivesse levitando; como se seu espírito estivesse saindo do corpo. Percebeu que uma porta abria-se atrás de si deixando entrar uma lufada de ar...  Num esforço Arthur respirou fundo, e então deu-se conta do que estava ocorrendo, e que estava acontecendo de novo. Abriu sua boca, aterrorizado, num grito sem voz...
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A mesa tornava-se cada vez mais farta e enfeitada, na medida em que os garçons traziam os pratos, todos eles deliciosamente decorados. Alguns  convidados ainda chegavam sorridentes, apesar de atrasados, e à distância Arthur observava Katy. Ela sentia-se nas nuvens com tantos presentes e manifestações de carinho. Esperara ansiosamente por esse dia, e estava feliz por tudo estar se realizando como sonhara. E Arthur, ainda mais, por poder proporcionar à filha aquela felicidade.
- Feliz aniversário princesa! – disse Arthur aproximando-se por trás da filha. -Espero que esteja feliz... foi  o melhor que consegui.
-Oh, papai! Tudo está tão perfeito! – Exclamou Katy. –Não poderia ser melhor!
-A mesa já está pronta, filha. E você precisa abrir o buffet para os convidados – disse Arthur. Ele cuidava de todos os detalhes para que nada saísse da programação. Arthur observava Katy dirigindo-se elegantemente em direção ao buffet, quando sentiu um aroma agradável atrás de si. Não precisava virar-se para saber quem usava aquele perfume. Por dezessete anos conhecia aquele “cheiro” que sempre despertava nele todos os instintos de homem.
- Ela não está maravilhosa? – Disse Zaira, também observando o passo cadenciado de Katy.
–Sim – respondeu Arhtur olhando-a com ternura.  –E não poderia ser diferente com a mãe que tem...- Acrescentou.
Zaira enganchou seu braço no de Arthur, e juntos assistiam à cerimônia que daria abertura ao buffet. Arthur não via a hora de poder servir-se, pois inexplicavelmente sentia uma fome avassaladora. De repente Arhtur sente uma tontura e uma sensação de desequilíbrio. Tenta, inutilmente, agarrar-se à Zaira que parece nada perceber, enquanto é projetado ao solo que, inesperadamente, estava muitos metros abaixo do normal...
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Num grande sobressalto, Artur acordou pendurado num emaranhado de cipós e folhas, balançando de um lado para o outro como se fosse um pêndulo. Foram necessários alguns segundos para Arthur assimilar o que estava acontecendo. Deixou-se balançar por mais um pouco, em profundo desânimo, ao constatar que estivera sonhando quando caiu da árvore. Com esforço, Arthur ergueu seu corpo para os galhos do grande carvalho.
Já fazia semanas que Arthur dormia durante o dia nos galhos do grande carvalho do Parque Nacional de Arnack, que ficava ao sul da cidade, desde que descobriu que seus galhos e folhas,  bem como toda a vegetação do parque, formavam uma ótima camuflagem que o protegia dos alienígenas durante o dia. Assim, Arthur escolheu uma forquilha na parte mais alta do carvalho, onde preparou uma espécie de rede com cipós como cama. Também teve o cuidado de manter suas pernas e braços amarrados  enquanto dormia para evitar uma eventual queda durante o sono, o que se mostrou providencial, como acabara de experimentar. Mas o dia já estava declinando, e havia muito por fazer. A noite era o momento mais seguro para continuar sua busca, e cumprir sua missão. Arthur começou a retirar os galhos, e folhas, que amarrara ao corpo como parte de sua camuflagem enquanto pensava na estratégia para aquela noite.
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Fazia pouco mais de dois meses que eles haviam chegado. De maneira rápida e imperceptível, os alienígenas pousaram  no meio do oceano Atlântico, de onde dirigiram-se para a terra seca mantendo suas naves submersas afim de não levantarem suspeitas. Infiltraram-se no litoral de Aberdeen, norte da Escócia, e pouco a pouco foram dominando a população.
Não eram muitos os alienígenas. Apenas algumas dezenas de criaturas com a missão de estabelecer na terra um quartel general para uma invasão em massa. Dominavam os seres humanos entrando em suas mentes quando olhavam em seus olhos, e tornando-as cativas à sua vontade. Logo após injetavam um sua corrente sanguínea uma substância que provocava uma mutação genética tornando os humanos em zumbis, sem vontade própria, e escravos de seus propósitos. Ainda não se sabia o que pretendiam com a invasão da terra, e era isso que Arthur pretendia descobrir. Por enquanto, tudo o que Arthur sabia era que os alienígenas eram um tipo de seres com protuberâncias na pele - tipo o que alguns índios da áfrica fazem ao inserir sementes por baixo da pele.  Possuíam uma forma mista de humanóides e animais, e uma força sobre humana, além, é claro, da capacidade de entrar nas mentes humanas e dominá-las. Ah, havia ainda, uma outra característica nos alienígenas, e nos humanos que sofriam a mutação. Possuíam um cheiro de carne podre que já tinha tomado conta da cidade. Um fedor de putrefação que dava a impressão de que todos os mortos haviam saído de suas tumbas e passeavam pela cidade.
Todos  os habitantes de Aberdeen, com exceção de Arthur, já haviam sido sido dominados. Foram caçados sem trégua por um exército de zumbis já dominados, para capturar e trazer à presença deles os ainda não dominados. A prioridade, e principal missão dos alienígenas antes de prosseguirem na conquista de outras cidades, era capturar Arthur, que por alguma razão desconhecida , não podia ser subjugado pelo poder dos alienígenas. Tinham de capturá-lo e estudar seu cérebro, a fim de descobrirem qual a razão de sua imunidade.
Embora sabendo que era caçado, Arthur tinha que entrar na cidade. Seu objetivo era não apenas descobrir o que pretendiam os alienígenas, e não apenas tentar buscar socorro na cidade vizinha - se conseguisse chegar nela, mas acima de tudo, encontrar sua mulher e sua filha. Ele sabia que não poderia trazê-las de volta por já terem sido subjugadas. A essa altura o processo de mutação já teria ocorrido. Mas precisava encontrá-las, e por pior que isso fosse, teria de matá-las para libertá-las. Isto Seria menos doloroso do que vê-las transformadas em mortas-vivas, e submissas às repugnantes criaturas.
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De onde estava, Arthur ainda podia ver a cidade ao longe. Logo tudo estaria mergulhado na escuridão já que o serviço de energia estava em total colapso, bem como todos os demais serviços essenciais na cidade. “Pelo menos isto está a meu favor” – pensou ele, enquanto se preparava, como um soldado se prepara para a batalha. Passou graxa de sapato no rosto e nas mãos, a fim de tornar-se mais invisível na escuridão e pegou suas armas – um facão de cinqüenta centímetros de comprimento que carregava às costas estilo samurai, e uma faca de caça com lâmina fina e pontuda que trazia na bota. Para completar seu arsenal, um bastão de madeira, de tamanho suficiente para esconder na parte interna da jaqueta. Arthur queria agir silenciosamente, por isso não optou por nenhuma arma de fogo, embora houvesse muitas ao seu alcance.
Enquanto se preparava, pensava na sua mulher e filha. Ainda estava sensível pelo efeito que seu sonho produziu. Foi naquele dia de felicidade, no aniversário de sua filha, que tudo aconteceu. De repente um forte cheiro de carne podre invadiu o ambiente, e todos os que olhavam espantados para as terríveis criaturas foram, um a um, subjugados. Arthur viu quando agarravam sua filha e com uma espécie de pistola injetaram-lhe uma substância. Avançou como um louco para cima do alienígena que, sem fazer esforço, arremessou-o contra a parede como se ele fosse nada. Quando recobrou a consciência, notou que todos agiam como zumbis, com o olhar vago e distante, e um dos alienígenas continuava o processo de infecção dos convidados com sua pistola. Não entendia como apenas ele parecia normal. Procurou com seus olhos sua mulher, e Katy, mas viu que já era tarde demais. Só havia uma coisa a fazer, fugir dali enquanto podia, valendo-se do fato que os alienígenas ainda não haviam percebido que ele era imune ao seu controle, e antes de ser infectado. Só assim poderia tentar ajudá-los, se fosse possível.
Quando os alienígenas perceberam que ele fugia, já era tarde demais. Já tinha uma grande vantagem sobre as criaturas que agora  o perseguiam, e notou como elas ficavam confusas e perdidas em meio à vegetação do jardim. Foi assim que decidiu dirigir-se ao Parque Nacional de Arnack, onde refugiou-se para definir uma estratégia. Passava camuflado no Parque durante o dia, onde descansava e dormia, e à noite descia para a cidade à procura de sua família.
Esta noite sua tarefa seria mais perigosa. Tentaria penetrar no QG dos alienígenas, uma vez que era o único lugar onde ainda não procurara sua família. Ele já percebera como o interesse dos alienígenas em capturá-lo era grande, por razões óbvias. Era muito provável que sua família estivesse entre eles como uma isca a fim de atraí-lo. Arthur sabia o risco que representava aproximar-se deles. Mas estava disposto mesmo a morrer, se necessário, desde que conseguisse libertar sua mulher e filha daquela triste condição. Além do que, viver sem elas - ou com elas naquelas circunstâncias -  não fazia o menor sentido.
Não era difícil localizar os alienígenas. Além do cheiro que os denunciava, seu QG era o único lugar onde havia luz na cidade. Longe de ser uma vantagem, isso se constituía num perigo maior para Arthur, pois até então, além da vegetação no parque, havia se valido também da escuridão para esconder-se ou movimentar-se. Com todo o cuidado, e com todos os sentidos alerta – especialmente o olfato - Arthur esgueirou-se por entre as árvores que cercavam o grande pátio onde um complexo de construções estava em andamento. O prédio central era o mais iluminado, o que indicava que era ali onde se encontrava a cúpula alienígena. Arthur observou cuidadosamente o lugar, estudando cada ponto enquanto tentava formar a melhor estratégia para penetrar sem ser notado. Nisso um cheiro nauseante infestou o ar, e Arthur já sabia que algum alienígena se aproximava. Uma espécie de sentinela fazia a ronda junto à cerca de proteção, o que obrigou Arthur a permanece tão imóvel quanto a árvore atrás da qual se escondia. Assim que o guarda se afastou, Arthur aproximou-se mais da cerca e observou ao longe a movimentação de vários humanos zumbis no interior do pátio. Arthur decidiu, então, retirar-se com uma ideia tomando forma em sua mente.
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O esforço para dominar a náusea, e segurar o vômito, era quase sobre humano. Mas Arthur estava convencido de que não havia outra maneira para entrar no complexo dos alienígenas sem ser notado por eles, ou pelos zumbis. Enfim, não suportou mais, e vomitou penosamente enquanto esfregava a carcaça apodrecida do cachorro morto há vários dias em sua pele e roupas. Desta maneira esperava penetrar entre os alienígenas fazendo-se passar por zumbi. Quase asfixiado pelo odor, tomou o rumo do complexo alienígena novamente, esperando que, com o tempo, seu olfato se acostumasse com o cheiro, tornando-o ao menos, suportável. Ao passar furtivamente por baixo da cerca, e penetrar no campo inimigo, uma dose de adrenalina tomou conta dele, de forma que quase não sentia o nauseante odor putrefato.
O maior desafio estava à sua frente, quando percebeu que para chegar ao prédio central precisaria passar por um grupo de zumbis que perambulavam de um lado para o outro como autômatos, não havia outra maneira de aproximar-se, e este seria o grande teste para sua estratégia odorífica. Tentando fazer-se parecer também um zumbi, com o olhar vazio e distante, Arthur balançava o corpo ao caminhar como se tivesse uma perna mais curta, e assim passou por entre eles sentindo o fedor intensificar-se em suas narinas. -“foi mais fácil do que imaginei” – pensou.
Arthur estava, agora, diante da porta que dava para o prédio central - O coração do quartel general dos alienígenas. Era de estranhar que não havia ali nenhum esquema de segurança. Arthur deu-se conta, então, de que além dele, não havia mais ninguém que pudesse representar qualquer ameaça aos alienígenas. Alguns guardas patrulhando as cercas era mais para cumprir uma rotina do que garantir proteção, por assim dizer. Com uma micha, Arthur forçou a fechadura da porta que abriu-se sem muita dificuldade, conduzindo-o a um corredor estreito e não muito comprido, que por sua vez introduziu-o numa ampla e iluminada sala com muitos computadores em atividade. À sua frente havia outra porta de onde vinha um ruído como se alguém estivesse digitando algo.  Cuidadosa e silenciosamente, Arthur se aproximou. Espiando pela pequena janela notou alguém sentado em frente a um computador. Não se parecia com um zumbi. Parecia-se mais com uma mulher, vista por trás. Chamou-lhe a atenção o cabelo e a maneira que estava preso. Parecia-se com o de... Zaira?
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Arthur não podia acreditar no que estava vendo. Ao entrar na sala Zaira virou-se e ficou frente a frente com ele, com aquele olhar como se dissesse: “esperei por você esse tempo todo!”
-Zaira... meu amor, como você veio parar aqui? – perguntou Arthur numa ansiedade crescente. –Como você não se tornou um zumbi? Eu vi quando lhe injetaram aquilo, seja lá o que for... Será que você  também é imune? Onde está Kate? Ela também está segura?
Zaira nada respondia. Apenas olhava para ele com uma expressão que Arthur não conseguia definir. E quando Arthur dirigia-se para ela, para abraçá-la, Zaira pressionou um botão ao seu lado, e o chão fugiu dos pés de Arthur. Surpreso, e confuso, Arthur mergulhou num vazio escuro.
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Pouco a pouco a visão embaçada de Arthur ia ficando mais e mais nítida. Sentia um gosto metálico na boca, e uma dor em todo o corpo. Seus pensamentos estavam confusos, e o esforço para entender o que estava acontecendo aumentava sua dor na cabeça. Sentiu também um agradável perfume no ar, um perfume conhecido que o fazia se sentir bem. Enquanto tentava lembrar-se onde sentira aquele aroma, um vulto surgia à sua frente, tomando forma cada vez mais nítida, como se uma imagem distorcida por excesso de zoom fosse corrigida. Era Zaira, que sentada ao seu lado na cama o olhava com um olhar preocupado.
- Não faça esforço meu amor. Você passou por um momento horrível. –Dizia Zaira enquanto segurava numa mão um comprimido, e um copo com água na outra.
-Zaira... – balbuciou Arthur. – O-onde estou... O que aconteceu?
- Descanse Arthur, querido. Tome esse remédio... Vai te fazer bem.
-Mas e os alienígenas? – perguntou Arthur. – Como você escapou?
Zaira o olhou, penalizada, e pousando a mão sobre o seu peito disse-lhe: -Arthur, você passou por um grande trauma na queda... no aniversário de Katy, lembra?
-Eu lembro dos alienígenas invadindo o lugar... os zumbis... o cheiro insuportável de carne podre. Eu lembro de você e Katy sendo dominadas por eles...
-Calma, calma, querido... não se agite. – Falou-lhe Zaira com ternura. – Como já disse sua queda foi grave. Você bateu com a cabeça na mesa com muita força... e a medicação tem provocado essas alucinações. Não se preocupe. Eu estou aqui e vou cuidar de você...
-O-onde está Katy. Eu quero vê-la - Disse Arthur aflito.
-Ela já está a caminho. Vem da escola direto pra cá, como tem feito durante todos os dias em que você ficou em coma. Agora basta que você tome este comprimido, e me deixe cuidar de você.
Zaira colocou o comprimido em sua boca e curvou-se para levar-lhe o copo à boca. Mais uma vez Arthur sentiu o seu perfume delicioso. O remédio começou o seu efeito rapidamente.
-Não se preocupe Arthur... Tudo vai ficar bem... O melhor em nossas vidas apenas está começando...
A voz de Zaira foi ficando cada vez mais distante, enquanto um sentimento de fraqueza tomava  conta de Arthur... Sentia-se como se estivesse levitando; como se seu espírito estivesse saindo do corpo. Percebeu que uma porta abria-se atrás de si deixando entrar uma lufada de ar...  e um cheiro nauseante. Num esforço Arthur respirou fundo, e então deu-se conta do que estava ocorrendo, e que estava  acontecendo de novo. Abriu sua boca, aterrorizado, num grito sem voz...
FÉ DEMAIS CHEIRA MAL - J. B. Rodrigues

A agitação na cidade era grande. Não se falava noutra coisa desde o início da semana, quando a notícia se espalhou. O Prefeito convocou uma reunião de emergência com a sua cúpula política, afim de tomar as medidas cabíveis diante do caso. A principal delas era mobilizar o posto policial, cuja força tarefa era constituída de um delegado e dois soldados, para que tomasse suas providências para uma eventual desordem pública. Padre Eusébio, preocupado, convocou suas beatas para uma novena especial, com vigília e jejum.  E é claro, a imprensa – representada pelo pasquim “Voz de Jabaquara ” - não poderia ficar de fora, já que, eventos, digamos, dessa proporção, não acontecem todos dos dias na cidade.

Jabaquara era uma cidade interiorana tranquila, com uma pequena população de gente simples e pacata. Gente rude, pela dureza do campo, e ingênua pela absoluta deficiência de meios de comunicação. O principal veículo de notícias na cidade, não era a “Voz de Jabaquara” – que se ocupava mais em fazer oposição ao prefeito Guilhermino  Tronqueira – mas sim o famoso “Boca-a-boca”. Foi assim que Abelardo Antero trouxe à cidade a notícia que causou tanto alvoroço.

-Lá na capital não se fala noutra coisa, homem! – dizia Abelardo ao compadre Belarmino na barbearia. - Até obturação de ouro em dente cariado ele faz!
- Mais será memo, cumpadi...? Eu num credito munto nisso, não... – dizia Belarmino enquanto passava espuma na cara de seu cliente.
- Mas eu não vi, homem? Ora se vi! Com esses olhos que a terra não há de comer tão cedo! E o compadre sabe que não sou homem de falar bobagem!

Nesse ponto todos concordavam. Abelardo Antero era o fazendeiro mais rico e respeitado na região. Tinha tamanha influência que sua palavra muitas vezes se sobrepunha até mesmo às do prefeito Guilhermino. E olha que Guilermino tinha o dom da oratória...

Além de tudo Abelardo era homem viajado. Viajava com freqüência pra capital afim de cuidar de seus negócios. Se orgulhava de já ter viajado até pro exterior, como quando uma vez esteve no Uruguai pra comprar umas vacas...

Pois foi numa dessas viagens que Abelardo ficou sabendo do famoso Missionário que chegaria à cidade na próxima semana. Se dizia que de onde vinha não tinha mais doentes, de tantos milagres que “Deus Nosso Senhor” operou através dele. Iniciou, assim, uma romaria pelo mundo, estabelecendo campanhas de milagres de cidade em cidade. Corria à língua solta os espantosos milagres acontecidos por onde quer que passava. Cegos voltavam a enxergar, paralíticos largavam as muletas, surdos ouviam e mudos falavam. Ah, e até obturação de ouro se fazia em dente cariado!

Chegou a vez de Jabaquara. A esperada chegada do tal missionário, tão afamado, se deu dalí a alguns dias. O assunto dominava todas as rodas de conversação, e muitas vezes provocava discussão acalorada.  As opiniões se dividiam entre os céticos, que precisavam ver para crer; os fanáticos, que tentavam a todo custo convencer a todos -principalmente os céticos;  e os indiferentes que assistiam a tudo com a mera curiosidade de ver “o que é que dá no final”. Todos queriam ver o homem que prometia “milagres nunca vistos desde os dias dos santos apóstolos”, conforme apregoavam os seguidores daquela nova seita.

Uma grande concentração se formou na praça da cidade com a concorrência de quase cem por cento da cidade. Todos queriam ver o missionário, e certificar-se de que toda a propaganda espalhada pela cidade nos últimos dias se justificava. Uma grande tenda, chamada de “Tabernáculo dos Milagres” foi montada, à frente da qual, reunia-se o Missionário, com seu séquito de mais ou menos quinze fiéis.  O Missionário, com a bíblia em punho, gesticulava fervorosamente à multidão em sua volta, desafiando todos a pôr a prova o grande poder do Deus de Abraão, Isaque e Jacó, enquanto um dos fiéis passava uma bandeja entre o povo coletando fundos para os pobres.

Abelardo Antero, tendo sido o portador das boas novas com tanto entusiasmo por tudo o que tinha ouvido na capital, decidiu que tinha a obrigação moral de defender a veracidade de sua notícia. Determinou que levaria um empregado gago até a presença do missionário para ser  curado. E para que a coisa ficasse bem confirmada, decidiu também levar um sobrinho, aleijado,  que andava de muletas desde que nascera.

O missionário, surpreso com a fé de Abelardo Antero, apressou-se em conduzir o gago e o aleijado para dentro da tenda, e de imediato iniciou uma longa e fervorosa oração com as mãos erguidas ao céu. Entre aleluias, e outras exclamações de louvor, o missionário invocou o grande poder do Todo Poderoso com tanta veemência, que alguns fiéis de olhos fechados, e igualmente com as mãos erguidas, juravam que sentiam a terra tremer...

Após a oração, concluída com muitos améns, um profundo silêncio se fez sentir ao redor. Silêncio quebrado apenas pela autoritária voz do missionário em direção à tenda:

- Digo ao aleijado que jogue a suas muletas para fora da tenda, em nome de Jesus!

O silêncio continuou enquanto o povo via duas muletas, uma após outra, voarem pra fora da tenda.

-Agora digo ao gago que fale alguma coisa, bem alto, para que todos glorifiquem a Deus!
Com a respiração suspensa, estupefatos, todos ouviram quando o gago gritou do interior do “Tabernáculo dos Milagres”:

-O-o-o a-aaa-aleij-jjj-jado ca-ca-caa-kkk-caiu!!!

O PODER DA PALAVRA - J. B. Rodrigues

 Dentre todos os animais da criação, apenas o homem - chamado racional- possui a capacidade da fala. A capacidade de expressar-se audivelmente de maneira articulada e inteligível. Logo, a importância das palavras torna-se, indiscutivelmente, vital para o ser humano. Daí a necessidade de estudar a linguagem; aprimorar a maneira de se expressar; enriquecer o vocabulário. É através das palavras que expressamos idéias, e damos forma e sentido à imaginação.

Mas as palavras não apenas servem como instrumento para expor o que pensamos. Elas têm um efeito muito maior quando usadas com propriedade e eloquência. Elas podem formar a opinião de milhões de pessoas e mudar o próprio curso da história. Palavras bem escolhidas, e ajuntadas de forma articulada, têm formado os mais famosos discursos, principalmente na esfera política. Hitler, por exemplo, com seus discursos inflamados arrastou uma nação inteira ao extremo fanatismo de adorá-lo como um deus. Dentre suas célebres frases destaco a seguinte: “Palavras erguem pontes para regiões inexploradas”. Foi mesmo assim. Suas palavras que pregavam a estúpida doutrina nazista de uma raça superior conduziram milhares de jovens para as mais obscuras regiões da crueldade humana, jamais exploradas pela nação alemã. Churchil, Roosevelt, Lincoln, entre outros, também inspiraram milhões com suas frases de efeito, algumas eternizadas na história.

Mas há que se dizer que, as palavras, são como uma faca de dois gumes, no efeito que produzem. Num discurso de mil palavras, basta uma para denegrir a imagem do orador. A palavra que tem por objetivo expor idéias, se mal interpretada, pode deturpar totalmente a mesma idéia. Por isso, todo o cuidado é pouco com as palavras. Uma vez ditas, são como águas derramadas na terra. Não se pode desfazer o ato, nem evitar o lodo.

Palavras têm o poder, também, de ferir. Ferem a alma, o orgulho, os sentimentos, o respeito próprio, como nenhuma outra arma é capaz de fazê-lo. Mas, felizmente, as palavras certas podem também curar, elevar a estima, incentivar ao melhor, estimular o amor, entre tantas outras coisas boas...
Portanto, sejamos sábios com as palavras, pois, segundo a Bíblia – cujas palavras a tornam o livro mais lido no mundo – as palavras são a tradução do que há no coração do homem.

ESTRANHO FENÔMENO - J. B. Rodrigues

Roberval já não agüentava mais os problemas na família. Havia já tempo que evitava todo tipo de reunião e confraternização familiar, pois sempre deixava um saldo de confusão e desentendimento. Era um tal de ela disse que ele disse, entre tantos outros argumentos de ataque e defesa, que nem o conciliador do Fantástico conseguiria resolver.

O pior de tudo era que Roberval tinha sérias desconfianças de que o pivô de todas as desavenças familiares era sua mulher, a qual, sempre jurava de pé junto: - Tu sabes que minha boca é um túmulo!
Pelo sim, pelo não, Roberval resolveu tirar a dúvida – que no fundo, no fundo, era uma certeza – e provar à sua mulher que não tinha uma boca tão santa como afirmava com tanta veemência. Depois de pensar um pouco brilhou no seu cérebro uma idéia, e naquele mesmo dia armou sua estratégia para desmascará-la definitivamente. Saindo do trabalho, passou num pequeno sítio próximo à sua casa onde se criavam galinhas e comprou meia dúzia de ovos, daqueles tipos “da colônia”, dando preferência a alguns até meio sujinhos...

Ao chegar em casa encontrou Doralice, sua mulher, pendurada ao telefone, como sempre, o que desta vez foi até providencial, pois assim, pôde guardar os ovos sem que ela os notasse. Após uma janta acompanhada de muitos comentários e novidades de Doralice, Roberval dirigiu-se à cama levando consigo um ovo. Esperou ela ferrar no sono para acordá-la em seguida com um ar de espanto:
- Doralice... Doralice... Acorda mulher! – Dizia Roberval enquanto a chacoalhava.

Doralice, esfregando os olhos, resmungou incomodada.

- O que foi Roberval? Está tendo um pesadelo? Eu disse pra você não comer demais...
- Não é isso, Dora. É muito pior. Pior do que qualquer pesadelo! – Dizia Roberval, mostrando-se atônito.
- Fala logo o que foi homem – disse Doralice já impaciente. – Está me deixando nervosa!
-Aconteceu algo incrível... E-eu botei um ovo!
-O que?  - Doralice sentou-se na cama enfurecida. – Você me acordou a essa hora pra fazer piadinha de mau gosto?
-Não é piada Doralice! Eu ia brincar com uma coisa dessas? Tá aqui ó, e ainda quentinho! – Dizia Roberval mostrando-lhe ovo, enquanto se esforçava para ser o mais convincente e assustado possível. Foi tão perfeito na arte de representar que Doralice não pôde duvidar.
-M-mas Roberval, como isso é possível?
- Não sei mulher! Amanhã mesmo vou procurar um médico pra tratar disso. Deve haver alguma explicação para uma coisa dessas! Mas ó: Pelo amor de Deus, mulher! Ninguém pode saber disso, senão vou virar a chacota do bairro!
-Claro, claro,  Roberval! Não se preocupe. Por mim ninguém saberá de nada. Você sabe...

Roberval levantou-se cedo pela manhã e nem tomou café. Preferiu tomar seu café na padaria da esquina aparentando estar muito preocupado, e com muita urgência de ir ao médico. Antes de sair, porém, fez sérias advertências à sua mulher para que nada do que aconteceu naquela noite saísse das quatro paredes de seu quarto.
-Ora Roberval, por quem me tomas?- Disse Doralice mostrando-se ofendida. –Tu sabes que minha boca é um túmulo!

Mal Doralice ouviu a porta bater, correu ao telefone:
-Alô, comadre Alvina? Eu preciso dividir isso com alguém, e como você é minha amiga de confiança... Menina você não sabe o que aconteceu esta noite! O Roberval, coitado... Não se sabe como... Pôs dois ovos!!!

Alvina, por sua vez, passado o espanto e após categóricas promessas de total discrição, também tinha, como todo mundo, alguém de sua máxima confiança. Imediatamente ligou para sua cunhada, Mercedes, contando como Roberval, marido de Doralice, pôs três ovos na noite passada!

E assim, espalhou-se a notícia naquela manhã de tal forma que, antes de chegar ao meio dia, quase toda a cidade já comentava o estranho fenômeno do “Zé Galinha”, o homem que a cada noite punha doze dúzias de ovos!