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quarta-feira, 12 de agosto de 2015

FÉ DEMAIS CHEIRA MAL - J. B. Rodrigues

A agitação na cidade era grande. Não se falava noutra coisa desde o início da semana, quando a notícia se espalhou. O Prefeito convocou uma reunião de emergência com a sua cúpula política, afim de tomar as medidas cabíveis diante do caso. A principal delas era mobilizar o posto policial, cuja força tarefa era constituída de um delegado e dois soldados, para que tomasse suas providências para uma eventual desordem pública. Padre Eusébio, preocupado, convocou suas beatas para uma novena especial, com vigília e jejum.  E é claro, a imprensa – representada pelo pasquim “Voz de Jabaquara ” - não poderia ficar de fora, já que, eventos, digamos, dessa proporção, não acontecem todos dos dias na cidade.

Jabaquara era uma cidade interiorana tranquila, com uma pequena população de gente simples e pacata. Gente rude, pela dureza do campo, e ingênua pela absoluta deficiência de meios de comunicação. O principal veículo de notícias na cidade, não era a “Voz de Jabaquara” – que se ocupava mais em fazer oposição ao prefeito Guilhermino  Tronqueira – mas sim o famoso “Boca-a-boca”. Foi assim que Abelardo Antero trouxe à cidade a notícia que causou tanto alvoroço.

-Lá na capital não se fala noutra coisa, homem! – dizia Abelardo ao compadre Belarmino na barbearia. - Até obturação de ouro em dente cariado ele faz!
- Mais será memo, cumpadi...? Eu num credito munto nisso, não... – dizia Belarmino enquanto passava espuma na cara de seu cliente.
- Mas eu não vi, homem? Ora se vi! Com esses olhos que a terra não há de comer tão cedo! E o compadre sabe que não sou homem de falar bobagem!

Nesse ponto todos concordavam. Abelardo Antero era o fazendeiro mais rico e respeitado na região. Tinha tamanha influência que sua palavra muitas vezes se sobrepunha até mesmo às do prefeito Guilhermino. E olha que Guilermino tinha o dom da oratória...

Além de tudo Abelardo era homem viajado. Viajava com freqüência pra capital afim de cuidar de seus negócios. Se orgulhava de já ter viajado até pro exterior, como quando uma vez esteve no Uruguai pra comprar umas vacas...

Pois foi numa dessas viagens que Abelardo ficou sabendo do famoso Missionário que chegaria à cidade na próxima semana. Se dizia que de onde vinha não tinha mais doentes, de tantos milagres que “Deus Nosso Senhor” operou através dele. Iniciou, assim, uma romaria pelo mundo, estabelecendo campanhas de milagres de cidade em cidade. Corria à língua solta os espantosos milagres acontecidos por onde quer que passava. Cegos voltavam a enxergar, paralíticos largavam as muletas, surdos ouviam e mudos falavam. Ah, e até obturação de ouro se fazia em dente cariado!

Chegou a vez de Jabaquara. A esperada chegada do tal missionário, tão afamado, se deu dalí a alguns dias. O assunto dominava todas as rodas de conversação, e muitas vezes provocava discussão acalorada.  As opiniões se dividiam entre os céticos, que precisavam ver para crer; os fanáticos, que tentavam a todo custo convencer a todos -principalmente os céticos;  e os indiferentes que assistiam a tudo com a mera curiosidade de ver “o que é que dá no final”. Todos queriam ver o homem que prometia “milagres nunca vistos desde os dias dos santos apóstolos”, conforme apregoavam os seguidores daquela nova seita.

Uma grande concentração se formou na praça da cidade com a concorrência de quase cem por cento da cidade. Todos queriam ver o missionário, e certificar-se de que toda a propaganda espalhada pela cidade nos últimos dias se justificava. Uma grande tenda, chamada de “Tabernáculo dos Milagres” foi montada, à frente da qual, reunia-se o Missionário, com seu séquito de mais ou menos quinze fiéis.  O Missionário, com a bíblia em punho, gesticulava fervorosamente à multidão em sua volta, desafiando todos a pôr a prova o grande poder do Deus de Abraão, Isaque e Jacó, enquanto um dos fiéis passava uma bandeja entre o povo coletando fundos para os pobres.

Abelardo Antero, tendo sido o portador das boas novas com tanto entusiasmo por tudo o que tinha ouvido na capital, decidiu que tinha a obrigação moral de defender a veracidade de sua notícia. Determinou que levaria um empregado gago até a presença do missionário para ser  curado. E para que a coisa ficasse bem confirmada, decidiu também levar um sobrinho, aleijado,  que andava de muletas desde que nascera.

O missionário, surpreso com a fé de Abelardo Antero, apressou-se em conduzir o gago e o aleijado para dentro da tenda, e de imediato iniciou uma longa e fervorosa oração com as mãos erguidas ao céu. Entre aleluias, e outras exclamações de louvor, o missionário invocou o grande poder do Todo Poderoso com tanta veemência, que alguns fiéis de olhos fechados, e igualmente com as mãos erguidas, juravam que sentiam a terra tremer...

Após a oração, concluída com muitos améns, um profundo silêncio se fez sentir ao redor. Silêncio quebrado apenas pela autoritária voz do missionário em direção à tenda:

- Digo ao aleijado que jogue a suas muletas para fora da tenda, em nome de Jesus!

O silêncio continuou enquanto o povo via duas muletas, uma após outra, voarem pra fora da tenda.

-Agora digo ao gago que fale alguma coisa, bem alto, para que todos glorifiquem a Deus!
Com a respiração suspensa, estupefatos, todos ouviram quando o gago gritou do interior do “Tabernáculo dos Milagres”:

-O-o-o a-aaa-aleij-jjj-jado ca-ca-caa-kkk-caiu!!!

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